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A poesia de Adélia Prado

Adélia Prado, um dos mais significativos nomes da poesia contemporânea, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935. Filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, Adélia, já na adolescência, aos quinze anos de idade, devido ao falecimento da mãe, sentiu o apreço pela poesia.

 

Em 1972, a poetisa perde o pai e no ano seguinte forma-se em Filosofia.  Também em 1973, envia seus poemas ao crítico Affonso Romano de Sant'Anna, que os apresenta ao poeta Carlos Drummond de Andrade. A apreciação de Drummond foi tão positiva que o autor de A rosa do povo, em 1975 sugeriu a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, a publicação dos poemas de Adélia. Dessa forma, em 1976, é lançado Bagagem.

A poesia de Adélia busca vestir-se de atitudes corriqueiras, gestos banais, irradiadores de pulsão simbólica sobre o cotidiano. A partir do ordinário do cotidiano, desponta a revelação da intimidade – da casa, do corpo, dos seres, das coisas. 

Além disso, é perceptível a sinergia e a tensão entre o sagrado, o erótico e o feminino, temas que conferem à Adélia o titulo de poetisa ímpar na literatura brasileira.  

Adélia Prado
Adélia Prado
Adélia Prado
Adélia Prado

Com licença poética

 

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

 

Casamento

 

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram

ele fala coisas como ‘este foi difícil’,

‘prateou no ar dando rabanadas’

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

 

Briga no beco

 

Encontrei meu marido às três horas da tarde

com uma loura oxidada.

Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.

Ataquei-os por trás com mão e palavras

que nunca suspeitei conhecer.

Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,

gritei meu urro, a torrente de impropérios.

Ajuntou gente, escureceu o sol,

a poeira adensou como cortina.

Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,

sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,

uivava.

Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.

Quando não pude mais fiquei rígida,

as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,

eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,

as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.

Desde então faço milagres.

 

Bairro

 

O rapaz acabou de almoçar

e palita os dentes na coberta.

O passarinho recisca e joga no cabelo do moço

excremento e casca de alpiste.

Eu acho feio palitar os dentes,

o rapaz só tem escola primária

e fala errado que arranha.

Mas tem um quadril de homem tão sedutor

que eu fico amando ele perdidamente.

Rapaz desses

gosta muito de comer ligeiro:

bife com arroz, rodela de tomate

e ir no cinema

com aquela cara de invencível fraqueza

para os pecados capitais.

Me põe tão íntima, simples,

tão à flor da pele o amor,

o samba-canção,

o fato de que vamos morrer

e como é bom a geladeira,

o crucifixo que mamãe lhe deu,

o cordão de ouro sobre o frágil peito

que.

Ele esgravata os dentes com o palito,

esgravata é meu coração de cadela.

 

Tempo

 

A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

Explicação de poesia sem ninguém pedir

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

Objeto de amor

 

De tal ordem é e tão precioso

o que devo dizer-lhes

que não posso guardá-lo

sem que me oprima a sensação de um roubo:

cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.

Quanto a mim dou graças

pelo que agora sei

e, mais que perdoo, eu amo.

 

Impressionista

 

Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

 

Ensinamento

 

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

‘coitado, até essa hora no serviço pesado’.

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

 

Deus não rejeita a obra de suas mãos

 

É inútil o batismo para o corpo,

o esforço da doutrina para ungir-nos,

não coma, não beba, mantenha os quadris imóveis.

Porque estes não são pecados do corpo.

À alma, sim, a esta batizai, crismai,

escrevei para ela a Imitação de Cristo.

O corpo não tem desvãos,

só inocência e beleza,

tanta que Deus nos imita

e quer casar com sua Igreja

e declara que os peitos de sua amada

são como os filhotes gêmeos da gazela.

É inútil o batismo para o corpo.

O que tem suas leis as cumprirá.

Os olhos verão a Deus.

 

Bulha

 

Às vezes levanto de madrugada, com sede,

flocos de sonho pegados na minha roupa,

vou olhar os meninos nas suas camas.

O que nestas horas mais sei é: morre-se.

Incomoda-me não ter inventado este dizer lindíssimo:

‘ao amiudar dos galos’. Os meninos ressonam.

Com nitidez perfeita, os fragmentos:

as mãos do morto cruzadas, a pequena ferida no dorso.

A menina que durante o dia desejou um vestido

está dormindo esquecida e isto é triste demais,

porque ela falou comigo: ‘Acho que fica melhor com babado’

e riu meio sorriso, embaraçada por tamanha alegria.

Como é possível que a nós, mortais, se aumente o brilho nos olhos

porque o vestido é azul e tem um laço?

Eu bebo a água e é uma água amarga

e acho o sexo frágil, mesmo o sexo do homem.

Matéria

 

Jonathan chegou.

E o meu amor por ele é tão demente

que me esqueci de Deus,

eu que diuturnamente rezo.

Mas não quero que Jonathan se demore.

Há o perigo de eu falar

                                  na presença de todos

uma coisa alucinada.

O que quer acontecer pede um metro imprudente,

                                  clamando por realidade.

Centopeias passeiam no meu corpo.

                                  Ele me chama Agnes

                                  e fala coisas irreproduzíveis:

‘entendo que uma jarra pequena

                                    com três rosas de plástico

              possam inundar você de vida e morte’.

              Você existe, Jonathan?

 

Fieira

 

Posso me esforçar à vontade

que a letra não sai redonda.

                      Deus meu vê.

Não escrevo mais cartas,

só palavrões no muro:

              Foda-se. Morra.

Estou cansada de dizer eu te amo.

Não tem começo nem fim minha paciência.

Não paro de pensar em Jonathan.

             Detesto escrita elegante.

             As tragédias são doces.

Aprendi a falar desde pequenininha.

         Tudo que digo é vaidade.

É impossível viver sem dizer eu,

      palavra a Deus reservada.

      Não sei como ser humana.

Saberei, se Jonathan me amar:

             ‘que unha forte!’,

              ‘você me lembra alguém’,

              ‘quase lhe mando um cartão’.

              Migalhas, Jonathan,

              você também vai morrer,

              fala,

              descansa meu coração.

Poema começado do fim

 

Um corpo quer outro corpo.

Uma alma quer outra alma e seu corpo.

Este excesso de realidade me confunde.

Jonathan falando:

                           parece que estou num filme.

Se eu lhe dissesse você é estúpido

ele diria sou mesmo.

Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear

                                       eu iria.

As casas baixas, as pessoas pobres

                                            e o sol da tarde,

imaginai o que era o sol da tarde

                                          sobre nossa fragilidade.

Vinha com Jonathan

pela rua mais torta da cidade.

                                               O Caminho do Céu.

O encontro

 

Jonathan,

se resolvermos que o céu

        é este lugar onde ninguém nos ouve,

quem poderá salvar-nos?

Quanto tempo resistiríamos

sem falar a ninguém deste acontecimento?

Acompanhei com os dedos

                 o desenho miraculoso do teu lábio,

         contornei-lhe as gengivas,

         bati-lhe no dente escuro

                              como em um cavalo,

um cavalo meu na campina.

Pedi-lhe: faz com tua unha um risco

                                           na minha cara,

o amor da morte instigando-nos

             com nunca vista coragem.

       Vamos morrer juntos

        antes que o corpo alardeie

                        sua mísera condição.

Agora, Jonathan,

              neste lugar tão ermo,

              neste lugar perfeito.

O mais leve que o ar

 

O que me leva a Jonathan?

A bicicleta do sonho,

mais veloz que avião.

Anda no mar, encantada,

         transpõe montanhas,

         para no portão florido.

Jonathan está no escritório

        com a luz do abajur acesa.

Demoro um pouco a bater,

        pro coração sossegar.

Jonathan me pressente

               e abre a cortina brusco,

               brincando de me assustar.

               As bicicletas são duas na planície.

Mais uma vez

 

Não quero mais amar Jonathan.

Estou cansada deste amor sem mimos,

destinado a tornar-se um amor de velhos.

Oh! nunca falei assim —

                um amor de velhos.

Ainda bem que é mentira.

Mesmo que Jonathan me olvide

            e esta canção desafine

como um bolero ruim,

permaneço querendo a bicicleta holandesa

e mais tarde a cripta gótica

pra nossos ossos dormirem.

          Ó Jonathan,

não depende de você

que a cornucópia invisível jorre ouro.

         Nem de mim.

Quero enfear o poema

pra te lançar meu desprezo,

                              em vão.

Escreve-o quem me dita as palavras,

escreve-o por minha mão.

Em português

 

Aranha, cortiça, pérola

e mais quatro que não falo

são palavras perfeitas.

Morrer é inexcedível.

Deus não tem peso algum.

Borboleta é atelobrob,

um sabão no tacho fervendo.

Tomara estas estranhezas

sejam psicologismos,

corruptelas devidas

ao pecado original.

Palavras, quero-as antes como coisas.

Minha cabeça se cansa

                         neste discurso infeliz.

Jonathan me falou:

             ‘Já tomou seu iogurte?’

Que doçura cobriu-me, que conforto!

As línguas são imperfeitas

                       pra que os poemas existam

e eu pergunte donde vêm

                   os insetos alados e este afeto,

                   seu braço roçando o meu.

O conhecimento bíblico

 

Deus me deu um amor e estas palavras

pra que eu possa erigi-lo,

palavras e um rito,

um lugar entre ruínas, longe

de todo bulício humano conhecido.

A felicidade é tão grande

                  que desperta os demônios,

os que se ocupam em gerar o medo,

pois de onde mais pode vir

                             este pensamento sujo:

você exposto, nu,

à minha sanha de perfeição.

São teus pés que nunca vi

                           que ameaçam minha vida

porque tua alma já é minha;

teu amor por orquestras,

tua inacreditável humildade.

Eu só quero o que existe,

por isso erijo este sonho,

concreto como o que mais concreto pode ser,

vivo como minha mão escrevendo

                                                    eu te amo,

não em português. Em língua nenhuma,

em diabolês, que quer dizer também

                                                     eu te odeio,

me deixa em paz,

não exija de mim tanta coragem.

Me deem um lugar no mundo,

onde não tenha ninguém,

um lugar entre ruínas.

O dia da santidade se aproxima,

o dia pagão em que nascerá minha vida.

Jonathan, antes de Cristo

                                        eu te amo.

Bendito

 

Louvado sejas Deus meu Senhor,

porque o meu coração está cortado a lâmina,

mas sorrio no espelho ao que,

à revelia de tudo, se promete.

Porque sou desgraçado

como um homem tangido para a forca,

mas me lembro de uma noite na roça,

o luar nos legumes e um grilo,

minha sombra na parede.

Louvado sejas, porque eu quero pecar

contra o afinal sítio aprazível dos mortos,

violar as tumbas com o arranhão das unhas,

mas vejo Tua cabeça pendida

e escuto o galo cantar

três vezes em meu socorro.

Louvado sejas, porque a vida é horrível,

porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos,

— velho ao fim da guerra com uma cabra —

mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,

por um canteiro de grama.

Louvado sejas porque eu quero morrer

mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.

Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,

a horta estava branca de luar

e acreditei sem nenhum sofrimento.

Louvado sejas!

* Todos os poemas foram retirados da seguinte edição:  PRADO, Adélia, Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015. 

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